domingo, 28 de dezembro de 2014


uma recta é compreendida por um conjunto infinito de pontos... 
Havia um ponto de partida e um ponto de chegada e cada metro que avançamos era para mim um destino. Claro que isto à velocidade a que pode andar um carro acontece de forma muito rápida, mas a infinita capacidade de adaptação dos sentidos apura-se e tudo acaba por acontecer de forma tão lenta e prazerosa que perdemos completamente a noção do tempo. Houve pontos intermédios feitos daquele sol de inverno que nos trespassa as sucessivas camadas de roupa para aquecer a superfície da pele, pontos de uma paisagem adocicada por essa cor de mel que contemplamos de olhos semicerrados.
Ao miradouro sobre as Portas de Rodão chegamos pouco antes do pôr-do-sol e começamos logo ali a contemplar e registar na mira da objectiva estas primeiras escarpas escavadas pela passagem do Tejo. Palavras como imensidão e grandiosidade passariam a integrar o nosso imaginário de forma mais realista. No centro da ponte o vento frio denunciava o inverno mas não intimidou quem como nós quer ver mais um pouco de outra perspectiva.
A noite chegou e com ela o segundo destino, Idanha-a-Nova que viria a ser o ponto central desta trajetória, aquele a que sempre regressamos para descansar e preparar o dia seguinte. Libertar mais um pouco para o universo as incertezas e receber a tranquilidade que daí advém. O jantar num cantinho intimista e simpático com a simpatia acrescida de quem nos acompanha é uma espécie de culminar cinematográfico, que se repetiria em muitas passagens deste fim-de-semana realizado por instinto.
Começar o dia seguinte acima de uma nuvem cerrada de nevoeiro que nos envolve nesse efeito de algodão, que bem podia ser doce, pela forma que nos mima os sentidos.
A aproximação a Monsanto é de uma ingenuidade tão grande como o arrebatamento que sentimos quando finalmente chegamos pelo próprio pé ao castelo. Foi entre descobertas várias que subimos devagarinho pelas ruas estreitas, encantando-nos com os pormenores desordenados de uma aldeia que cresceu por entre os afloramentos graníticos. Soa-me bem chama-los de afloramentos ao invés de rochas retirando-lhe a dureza, rudeza e o peso que não têm na paisagem. É mais um percurso para fazer sem pressas para apreciar isso mesmo, a manifestação geológica da natureza perante a civilização. À medida que vamos descobrindo o topo do castelo também nós crescemos com a envolvente paisagística que sendo imensa se redime a estes gigantes de natureza mineral. Contemplar é a palavra que nos faz sonhar a ficar ali para sempre, e é certo que para sempre deixei lá a pairar um pouco da felicidade que experimentei. Como em tantas outras ocasiões a hora de virar as costas não é fácil mas fingimos que somos anjos e portanto, não temos costas e seguimos disfarçadamente a descobrir outros pormenores que nos vão fazendo seguir o nosso caminho por entre o inevitável. Parar para almoçar com vista para a imensidão preenche-nos de uma maneira geral, ainda adocicada de um licor de mirtilo e outro de tangerina e mel.
Saí de Monsanto com uma Marafona na mão e a alma encantada por esta aldeia que há muito sonhava visitar sem ter a mínima noção da grandiosidade que me esperava. Esta foi a boneca que pedi ao pai natal e parece que me portei muito bem este ano, muito bem mesmo.
Deslizamos mais um pouco na planície até Penha Garcia e depois de Monsanto desconfia-se que nada mais nos poderá surpreender tanto e como quem não quer a coisa, espreitamos para lá do muro de trás da igreja e voltamos a ser surpreendidos. Mais escarpas que se escondem por detrás da barragem. Agora tudo o que temos de fazer é olhar para baixo e descer. Nestes dias curtos fizemo-lo um pouco mais depressa do que desejaríamos pois aquele vale fugia da incidência do sol a cada minuto. Entre fósseis e tentativas de fixar na memória aquilo que uma máquina já não tinha capacidade de fazer, chegámos aos moinhos e a gentileza do Sr. Domingos ainda nos abriu a porta do moinho para ver a mó a rodar e levou-nos até à casa dos fosseis que os flashes iluminaram. Restámos nós e o anoitecer e saímos dali a passo rápido com a pouca luminosidade que restava no céu. Regressar a lamentar o pouco tempo que tivemos para apreciar aquele vale encantado e passar novamente ao lado de Monsanto para essa visão mítica da aldeia iluminada lá no alto.
Na casa improvisada, improvisar o jantar enquanto se acerta as voltas do dia seguinte.
Acordar lentamente para a Falha de Ponsul, em mais uma escadaria que esconde uma paisagem de contrastes hipnotizantes na manhã do dia que não queremos que acabe. Desviar para a Barragem Carmona para admirar esse espelho de água onde o céu se estende e nos deixarmos levar nessa troca de lugares na dança da brisa suave que ali passa. Seguimos para Idanha-a-Velha, a qual é demasiado pequena para nos perdermos mas com pormenores vários para retermos a atenção. Senti em qualquer das aldeias falta das gentes que as povoam, os portais sem as velhinhas a apanhar sol ou a costurar mais marafonas ou os velhotes a conduzirem as cabras e as ovelhas aos currais comunitários. As molas coloridas nos estendais contrastam com a desertificação e silêncio das ruas. Paramos mais tempo junto de um ribeiro que passa ao lado da muralha. O som da água a cair em cascata por entre as pedras acalma-me e aviva a paisagem de um movimento gravítico que nos leva com a corrente para outro lugar mais adiante.
Ao homem do Gps agradecemos o caminho que nos indicou para voltar a Monsanto. Regressar por uma estrada deserta com o monte de frente para nós pelo lado descivilizado. Parar e contemplar tanto quanto possível pois havia que continuar e às tantas a fome já não se compadece com a paisagem. Brindar a nós pela sorte que temos de estar ali e então subir mais um pouco a pé por entre os penedos gigantes dos quais já sentia saudade. Tirar mais umas fotos para reter a felicidade que por lá transformei em energia para os dias que vêm.
Na recta final, de mais pontos, em muito semelhantes aos que ali nos conduziram, menos expectantes das incertezas, mais seguros sobre as horas bem passadas por entre paisagens deslumbrantes no nosso território, cheguei novamente de mãos dadas com a vida que continuo a querer descobrir…


2 comentários:

koklikô disse...

Que lindo texto Ana, um dos mais bonitos que li, não só aqui mas em toda a blogosfera.
Conseguiste levar-me contigo nesta viagem, conseguiste recordar-me da emoção avassaladora que senti quando também eu percorri essas terras ... falta-me conhecer Penha Garcia ( foste ao Pego?) e o Tejo Internacional, quero muito passar aí um fim de semana na Primavera, quando os campos se enchem de alfazema e malmequeres.
Que tenhas um ano fabuloso Ana, que continues esta descoberta desses territórios geográficos e também interiores.
Um abraço

Ana Fernandes disse...

Obrigada Dulce pelo comentário... a viagem foi realmente tão feliz que é impossível não partilhar essa emoção e deixá-la transparecer para o texto... Bj*