sábado, 21 de abril de 2007


01/01, 00:04
Encontrámos o Henriques à saída do metro. Encontrei um homem que me pediu um lenço de papel. Chorava. Magro, frágil, tez morena e envelhecida. O B não hesitou em parar, o que me deixou tranquila por saber que não o iríamos deixar para trás. “Porque choras?” perguntei e “Porque choras hoje?” pensei. Hoje todos sorriem, muitos cumprimentam-se na certeza de que nunca se viram e na incerteza de que se reencontraram. Entre tristes e indiferentes a grande maioria sorri. Eu e o B combinamos juntar-nos à maioria mas estávamos atrasados, como sempre estamos na maioria das vezes para estas ocasiões. Dei-lhe um lenço, que passou afavelmente no rosto. Olhou-nos percorrendo-nos de baixo para cima. Elevou o olhar como quem se ergue dos escombros mas voltou a descair. Para o acompanharmos sentamo-nos com ele. Naquele silêncio cada gesto entre mim e o B sussurrava “Obrigada por ficares!”.
“Tenho uma vida… porquê?” questionava-se o Henriques, “Porquê eu? Olhem…”. Da carteira retirou os seus documentos pessoais. Recordo um cartão de antigo militar do qual sobressaía uma fotografia a preto e branco.
“O que te aconteceu?” perguntei à fotografia, mas as fotografias não falam, gravam um instante passado e prometem futuro. E o que aquela me prometia revelava-se mentira diante dos meus olhos. Queria-nos comprovar a sua identidade. Qual a diferença entre o choro de um homem desconhecido e um homem com nome?
Para o Henriques havia uma diferença que justificava a verdade. E continuou a comprová-la, enquanto eu lhe recolhia os cartões, como se fossem cartas de um castelo em ruínas. Desta vez comprovava-a pela sua fé, retirava imagens de santos que gostava de trazer consigo. “Estão a ver? Porquê eu?”. Perante tão honesta convicção, não tivemos coragem de lhe dizer que para nós não precisava de acreditar em Deus. Para nós, o Henriques, era uma incógnita da infinita equação da nossa fé. Para ele, nós, éramos uma solução da sua crença. Aceitámos ser indícios de esperança. Contou-nos porque queria que aquele primeiro fosse o último dia. Não mais recordar para si as histórias de uma vida sem futuro. É dia de reavaliar, dia da extrema alegria cavar a extrema tristeza. Dei-lhe outro lenço e olhei para o fundo da gare, precisava de suster as lágrimas de impotência que ameaçavam turvar a minha visão. O B e eu cooperávamos na competição por aguentar aquela vida. Num acordo mútuo assumimo-nos adversários pelo Henriques e não cúmplices da sua ausência. Incansáveis contra-argumentamos e sustivemos a respiração a cada contra-reacção. Ambos sabendo que a nossa certeza era frágil, bem mais do que o próprio Henriques, pois ele, era o único capaz de a quebrar.
“...e há mais…” acrescentou... desconfiei que nos faltariam argumentos sólidos…
“Sou seropositivo”
Seguiram-se segundos de um silêncio, hoje eternizado em mim por respeito à sua dor e por respeito a quantos têm aquele olhar.
“... por nós Henriques, não faças isso”
Éramos a ultima carta do baralho, argumentos de uma pele que nos cobria o vazio da alma. Dêmos tudo o que tínhamos.
O que fui eu e o B? A mão que lhe deu um lenço, a mão que pegou na sua e a largou perguntando-lhe “Ficas bem?”
Acreditámos que sim e deixámo-lo...
A uma hora que poucos sorriam, o B também chorou e eu… ainda estou a olhar para o fundo da gare...
Sinto que estávamos atrasados para um destino que não era o nosso.
Será que chegamos a tempo?

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